Há certas coisas que fazemos, quase instintivamente, um sentimento de proteção, de auto-preservação ou sei lá o que, que na verdade são mais nocivas do que benéficas. Mas a gente segue fazendo. Dia após dia. Uma dessas atitudes é a que eu quero tratar hoje. A nossa velha mania de maquiar os problemas e fingir que está tudo bem, geralmente pra não sofrer.
A gente finge que não vê a louça suja na pia, porque dá um jeitinho de organizar tudo de uma forma que fique bem compacta e a gente mente pra si mesmo dizendo que “tá pouco, depois a gente faz”.
A gente finge que meteu a cara na porta e maquia o olho roxo do soco doído e mente pra gente mesmo dizendo que ele não vai mais fazer isso, já já tudo é esquecido.
A gente finge que não se importou com aquela ameaça velada do chefe e diz pra si mesmo que é um incentivo e que esse é o jeito dele tirar o máximo dos funcionários. E se desculpa pelo telefone com a família por ter que chegar mais tarde de novo, porque precisa investir na sua carreira.
A gente finge que aquela atitude do companheiro não é lá tão importante para ser discutida e para evitar outra longa DR que possa acabar em briga, passa por cima dos sentimentos e torce para esquecer em uns dias.
A gente finge que é pra não sofrer. Mas sofre assim mesmo.
Essa mania que a gente tem de evitar o atrito (que a gente chama de sofrimento), as discussões, as conversas difíceis que ninguém quer ter, os trabalhos chatos que ninguém quer fazer, leva a gente a uma vida no automático. O que é mais ou menos continua mais ou menos, o que é ruim tem uma tendência a piorar, o que é bom acaba durando pouco ou não sendo tão relevante frente às demais. A gente finge que vive, mas sobrevive.
O que a gente precisa entender é que a vida é feita de mudanças, a gente muda o tempo todo, o mundo muda o tempo todo — já dizia Lulu Santos — e a gente tem que se adaptar, acompanhar, seja para garantir nosso lugar ao sol, seja pra enfrentar mudanças que sejam num caminho mais tenebroso. A gente MUDA! E sabe o que garante que a gente mude?
O incômodo. A mudança acontece quando existe o incômodo.
Então deixa doer. Deixa a louça suja às vistas, não tenta esconder. Deixa os problemas em casa virarem conversas difíceis e necessárias. Deixa o abuso moral do chefe doer e enfrenta, se move. Deixa as tarefas embaralharem pra te mostrar que você tá pegando coisa demais.
Deixa incomodar!
Mudar esse modus operandi não é fácil. Ninguém quer se sentir incomodado. Ninguém quer sentir dor. Ninguém quer correr o risco de perder aquela pessoa especial que só tem esse pequeno erro de lhe dar uns socos de vez em quando. Ninguém quer perder esse emprego que lhe paga as contas, mesmo que lhe tire a paz, a saúde e até mesmo a auto-estima. Dói olhar dessa forma, sem os filtros, a crua e cruel situação como ela é. Dói, eu sei, desculpa.
Mas se não olharmos, se não mexermos, se não abalarmos essa estrutura viciada, seguimos no automático. Deixando a vida nos levar pra onde quiser, na velocidade que quiser, até o momento em que a vida perde o interesse e nos descarta. Aí vai doer mais ainda. Vai doer tanto que se não estivermos preparados, quebramos.